Como equacionar a incerteza de hoje, em um contrato de longa duração e regras rígidas?
Artigo por Marcus Rodrigo de Senna, sócio das nossas áreas de Infraestrutura e Estruturação de Projetos de Infraestrutura.
As novas modelagens dos contratos de concessão devem reconhecer o estado de incerteza e, mais do que isso, ajustar as obrigações e encargos contratuais a essa situação
O dilema está posto. Todos concordam que é necessário – claro que no momento oportuno, em termos de saúde pública – que a economia volte a acelerar e, para que isso ocorra com a rapidez necessária para evitar uma recessão grave, todos convergem quanto à necessidade de um estímulo adicional. É também consenso que a infraestrutura será peça primordial nesse momento, pela sua capacidade de capilarizar o efeito dos recursos de investimento na sociedade.
No âmbito do Governo Federal, não obstante essa convergência de pensamentos, houve um início de dissensão quanto ao método a ser utilizado, alguns ministros considerando a possibilidade de se realizar amplo investimento público direto (Plano Pró-Brasil, também chamado de Plano Marshall, bastante divulgado pela mídia), alguns insistindo em investimentos privados. A situação foi aparentemente pacificada a favor do pensamento do Ministro da Economia e o Plano Pró-Brasil, que chegou a ser apresentado conceitualmente, foi reclassificado por este como estudos, talvez passíveis de algum aproveitamento futuro. No fim, pelo menos por enquanto, prevaleceu a lógica de atração de investimentos privados.
As dificuldades para isso, porém, também estão colocadas. A atração desses investimentos privados não será tarefa simples. Não por falta de interesse, mas por dificuldades várias, que vão de questões de funding, câmbio, até questões mais essenciais, como a dificuldade de os investidores privados elaborarem projeções, minimamente confiáveis, quanto ao comportamento futuro das variáveis envolvidas em um grande contrato de infraestrutura. Como estimar o tráfego, de carga ou usuários, nos próximos anos? O gráfico da curva de queda/retorno da economia será em V ou será em U? Nesse último caso, qual será a extensão desse U, em meses ou anos? E, mais importante, a ponta futura do U retornará à mesma curva de crescimento da ponta inicial, ou se perpetuará em uma curva de crescimento inferior?
Os especialistas reconhecem que a falta de precedentes dificulta prever o comportamento do mercado após o término da pandemia, até mesmo pela incerteza quanto à própria duração dos efeitos desta. Haverá ou não uma segunda onda? E uma terceira? Quando haverá uma vacina ou um tratamento eficaz? Mesmo a experiência da China – e, em breve, dos EUA e de países europeus – não se replicará no Brasil, porque as condições econômicas, sociais, políticas, são muito diferentes.
A essas incertezas, acresçam-se outras, quanto aos efeitos do próprio recolhimento social. As reuniões remotas afetarão o fluxo das viagens de negócios, pelos vários meios de transporte? O comércio digital acelerará o seu impacto – que já ocorria – na estrutura do varejo? Será conveniente diversificar as cadeias de suprimentos, por segurança? Mas isso será possível num ambiente de maior competição? Essas serão novas variáveis, a serem consideradas nas equações econômicas dos projetos? Em que dimensão e alcance?
Todos concordam que são possibilidades e dúvidas razoáveis, mas, até agora, as manifestações a respeito estão mais para apostas ou desejos do que para respostas efetivas, pelo mesmo motivo: não há precedentes a balizar uma análise com algum critério.
No caso da infraestrutura, todavia, há um ponto a favor da continuidade, os agentes privados têm grande interesse em participar dos projetos de infraestrutura nacionais. A dúvida não é sobre participar ou não, mas outra, muito mais pragmática. Como equacionar a incerteza hoje vigente, em um contrato de longa duração e com regras rígidas? Ainda mais em um País em que os agentes públicos não têm tido condições de atuar – de uma forma legalmente segura – para salvar empreendimentos em dificuldades? Há vários exemplos, desnecessário listá-los, de projetos que poderiam ter sido redimensionados e ajustados, mas o País debate o tema há vários anos, sem nenhum sucesso.
No contexto atual, portanto, as propostas nas eventuais licitações de infraestrutura poderão refletir uma enorme disparidade, alguns proponentes tentando se prevenir economicamente da incerteza, enquanto outros, sem a dimensionar adequadamente, de forma consciente ou não, apresentarão propostas falhas – e essa experiência também já foi vivida – que não se sustentarão ao longo do tempo. O histórico recente das concessões com dificuldades não é animador, são notórios alguns impasses em concessões de rodovias, portos, ferrovias, energia elétrica, dentre outros.
Qual seria, então, a forma de equacionar esse dilema, em que, de um lado, há o grande interesse dos Poderes Concedentes na atração dos investimentos privados e dos entes privados em participar das licitações, mas, por outro lado, há grande insegurança das projeções, o que pode levar os particulares a um negócio com resultados inferiores ao esperado, e os Poderes Concedentes a mais uma onda de contratos com dificuldades, em prejuízo do serviço público?
A resposta talvez seja essencialmente muito simples. Para prover um mínimo de segurança futura, que permita contratos saudáveis e evite situações críticas em poucos anos, a melhor solução é promover uma alteração de conceito das modelagens. Ao invés do foco atual – desnecessário reprisá-lo nesse momento, todos conhecem os editais recentes – as novas modelagens devem necessariamente reconhecer o estado de incerteza e, mais do que isso, ajustar as obrigações e encargos contratuais a essa situação.
Não se vê muita lógica em definir, agora, a data de um aumento de capacidade do empreendimento licitado, se é desconhecido o comportamento futuro da demanda, se ela retornará ou não ao patamar anterior, se aumentará, ou quando isso ocorrerá. Toda e qualquer exigência prefixada em um ambiente volátil poderá se tornar investimento supérfluo, ou, pior do que isso, poderá inviabilizar que se faça a proposta por um empreendimento.
Não se defende, é claro, licitações de infraestrutura em que as obrigações não estejam definidas, ou que não reflitam a essência das concessões e PPPs, que é a gestão pelo particular por sua conta e risco. Sugere-se que, para navegar nessas águas turbulentas, os novos contratos podem privilegiar os denominados “gatilhos”, sejam de volumes, de carga, passageiros, veículos etc., de modo que quando a demanda esperada ocorrer – não em X ou Y anos – haverá o investimento, porque, nesse momento, serão consequentes os recursos. Sem uma demanda efetiva, a implantação precoce de investimentos somente serviria a uma demonstração estéril, sem qualquer fim socialmente justo e, consequentemente, o concessionário ouvirá do financiador – seja ele um banco de fomento ou comercial – que as receitas de seu projeto não comportam um financiamento de tão grande porte.
Por outro lado, com a absorção desse grau de incerteza pelas modelagens, jurídica e econômica, os contratos se tornarão mais fluidos, sendo exatamente adequados à demanda efetiva. As receitas serão ajustadas, bem como o oportuno financiamento. Estará afastado o risco excessivo, decorrente da impossibilidade de projeções confiáveis e, para os Poderes Concedentes, o risco de se repetirem alguns insucessos recentes.
Cabe sempre lembrar que os contratos administrativos devem ser eficientes. A alocação exagerada de riscos aos entes privados prejudica essa eficiência, seja porque faz refletir nas propostas riscos que são remotos e de difícil quantificação, do que decorrem propostas de tarifas mais altas do que deveriam ou outorgas mais baixas, ou seja porque, se os proponentes não anteveem ou não quantificam adequadamente tais riscos improváveis, mas eles vem a ocorrer, os contratos se inviabilizam.
A alocação de determinados riscos ao Estado, portanto, não visa favorecer as empresas privadas, mas tem como objetivo tentar a eficiência do contrato, que é dada pela conjugação entre a modicidade tarifária e a segurança do cumprimento adequado do contrato até o seu término. Os riscos sobre o quais o ente privado não tem qualquer gestão devem ser alocados ao Estado, para retirá-los da conta da proposta (favorecendo a modicidade tarifária), porque somente o Ente Público tem condições de equacioná-lo.
Portanto, o dilema está posto. Mas, talvez seja um falso dilema, porque tem como ser solucionado.